Responsabilização de Terceiros na falência
Resumo
O desvirtuamento da desconsideração da personalidade jurídica no processo falimentar busca responsabilizar indevidamente sócios, administradores ou controladores por dívidas da empresa falida, além dos limites da sua responsabilidade limitada. A Lei nº 14.112/2020 reforma o artigo 82-A da Lei de Falências, estabelecendo limites para a aplicação da desconsideração, impedindo a responsabilização por obrigações superiores aos valores ilicitamente obtidos. Este trabalho busca debater sobre a aplicação da lei e busca por alternativas para responsabilizar os envolvidos sem ferir o princípio da responsabilidade limitada.A reforma é um passo importante, mas ainda há desafios para garantir a aplicação justa da desconsideração da personalidade jurídica na falência.
1.Introdução
O desvirtuamento da desconsideração da personalidade jurídica no processo falimentar tem sido uma prática preocupante que impacta diretamente os sócios, administradores e controladores de empresas em falência. Esta prática, ao ultrapassar os limites da responsabilidade limitada, coloca sobre esses indivíduos um ônus desproporcional ao seu papel na gestão da empresa, equiparando-os praticamente a falidos. Tal equiparação pode resultar em consequências financeiras e sociais severas, obrigando-os a arcar com obrigações sociais da empresa falida que, em muitos casos, superam em muito os benefícios que obtiveram de forma ilícita.
O equívoco da desconsideração da personalidade jurídica é ainda mais evidente quando se considera o contexto em que esses agentes são responsabilizados por dívidas e obrigações empresariais que estão além da esfera da sua atuação direta e legal. Essa prática não apenas compromete a proteção legal dos sócios, administradores e controladores, mas também distorce a própria noção de responsabilidade limitada, princípio fundamental do direito empresarial. Assim, é crucial reavaliar e corrigir esses desvios para garantir a justiça e a equidade no processo falimentar.
O estudo de Cardoso (2023) destaca essa anomalia como um desafio significativo que requer atenção e reformas legislativas adequadas. Ao reconhecer os impactos negativos dessa prática, é possível buscar alternativas que responsabilizem os envolvidos de forma justa e proporcional, sem comprometer os princípios fundamentais do direito empresarial. Essa análise aprofundada é essencial para orientar políticas e práticas que promovam a responsabilidade empresarial de forma equilibrada e respeitando os direitos e garantias dos agentes envolvidos.
O presente estudo mergulha na problemática do desvirtuamento da desconsideração da personalidade jurídica no processo falimentar, prática que visa indevidamente responsabilizar sócios, administradores ou controladores de sociedades em falência por além dos limites da sua responsabilidade limitada. Conforme Cardoso (2023), essa anomalia, que os equipara a falidos, impõe-lhes o ônus de arcar com obrigações sociais da empresa falida, muitas vezes ultrapassando os valores por eles ilicitamente auferidos.
Até dezembro de 2020, a Lei nº 11.101/2005 (Lei de Falências e Recuperação de Empresas) apresentava lacunas que permitiam a aplicação distorcida da desconsideração da personalidade jurídica. Essa ferramenta, originalmente concebida para combater fraudes e abusos, era utilizada de forma indevida para responsabilizar sócios e outros personagens por dívidas da empresa falida, mesmo que não tivessem se beneficiado diretamente delas.
Em um movimento para coibir essa prática abusiva, a Lei nº 14.112/2020 reformulou o artigo 82-A da Lei de Falências. A nova redação busca estabelecer limites claros para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, impedindo que ela seja utilizada para responsabilizar sócios, administradores ou controladores por obrigações que superem os valores por eles ilicitamente obtidos.
Apesar da reforma, a desconsideração da personalidade jurídica no processo falimentar ainda gera debates e incertezas. Diante disso, torna-se crucial acompanhar os posicionamentos da doutrina e da jurisprudência sobre o tema, a fim de aprimorar a aplicação da lei e garantir a justiça para todos os envolvidos.
2. Referencial teórico
2.1 Os efeitos da falência para a pessoa do falido
A falência é um processo jurídico que visa a liquidação de ativos de uma empresa insolvente para pagar seus credores (SACRAMONE, 2023). No entanto, seus efeitos vão além das dimensões jurídicas e financeiras, conforme este mesmo autor, afetando profundamente a pessoa do falido, ou seja, o empresário ou gestor da empresa declarada falida.
Primeiramente, a falência implica a perda de controle sobre os ativos e negócios da empresa, resultando em uma significativa diminuição do patrimônio pessoal e empresarial do falido. Este processo é acompanhado pela nomeação de um administrador judicial, que assume a gestão dos bens e obrigações do devedor, limitando suas ações sobre seu próprio patrimônio. Ademais, o falido pode enfrentar restrições legais, como a proibição de exercer determinadas atividades comerciais e empresariais, e a perda de direitos civis específicos, como a capacidade de ocupar cargos públicos ou atuar como administrador de outras empresas (SACRAMONE, 2023). Essas restrições visam proteger o mercado e os credores contra práticas inadequadas ou fraudulentas.
No âmbito social e psicológico, o impacto da falência pode ser devastador. A estigmatização social e a perda de reputação profissional são consequências frequentes, levando à marginalização do falido na comunidade empresarial e pessoal. Este estigma pode gerar estresse significativo, afetando a saúde mental e emocional do indivíduo, muitas vezes culminando em problemas como ansiedade e depressão. A compreensão desses efeitos é essencial para a formulação de políticas que possam oferecer suporte adequado aos indivíduos que enfrentam a falência, mitigando suas consequências e facilitando a reintegração econômica e social.
2.2 Os bens do falido após a falência
O processo de falência visa principalmente o pagamento do maior número possível de credores, reunindo todo o patrimônio do devedor e submetendo-o ao procedimento falimentar, sempre respeitando a ordem legal de preferência. No entanto, existem restrições legais que permitem a exclusão de certos bens do alcance dos credores. O artigo 832 do novo CPC estabelece que “Não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis.”
Com a decretação da falência, ocorre a segregação do patrimônio do devedor. De um lado, temos a massa falida objetiva, que consiste em um conjunto de bens vinculados ao processo e geridos pelo administrador judicial. Do outro lado, estão os bens não sujeitos ao processo, ainda administrados pelo próprio devedor. A apreensão dos bens também pode ocorrer antes da sentença declaratória, como medida assecuratória, se houver receio de dano irreparável ou de difícil reparação, especialmente quando há indícios de atos de dilapidação do ativo.
A falência resulta no afastamento do devedor de suas atividades, conforme disposto no artigo 75 da Lei 11.101/2005, que visa preservar e otimizar a utilização produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos da empresa. O devedor é privado dos poderes de administração e disposição de seus bens, que passam a ser administrados pelo administrador judicial. Esta privação normalmente é um efeito automático da decretação da falência, mas pode ocorrer antes, a partir do eventual arresto de bens do falido. Durante o processo de falência, o devedor pode fiscalizar a administração, requisitar providências para a conservação de seus direitos ou dos bens arrecadados, e atuar como assistente nos processos em que a massa falida seja parte ou interessada.
É importante destacar que a privação dos poderes de administração afeta apenas os bens sujeitos ao processo de falência. Bens absolutamente impenhoráveis, como o bem de família, continuam sob a administração do devedor falido.
2.3 Desconsiderações da personalidade jurídica no processo falimentar
A Lei 11.101/2005, que aborda a recuperação judicial, extrajudicial e a falência de empresários e sociedades empresárias, prevê a desconsideração da personalidade jurídica no processo falimentar conforme o artigo 82-A, parágrafo único. Esse dispositivo estabelece que o juízo falimentar pode decretar a desconsideração com base no artigo 50 do Código Civil, em casos de abuso da personalidade jurídica caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. Para aplicar essa medida, o juiz considera a teoria maior conforme o Código Civil de 2002.
Marlon Tomazette (2017) argumenta que, tanto pela teoria maior quanto pelo Código Civil, é possível desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade falida nos casos de fraude e abuso relacionados à autonomia patrimonial. A fraude envolve a distorção intencional da verdade para prejudicar terceiros, enquanto o abuso refere-se ao mau uso do direito que vai contra sua função social.
Oliveira (2021) por outro lado, destaca que a confusão patrimonial sozinha não justifica a desconsideração, pois em algumas sociedades é comum usar os bens dos sócios para a gestão da empresa sem a intenção de prejudicar credores. Segundo Tomazette, a confusão patrimonial pode ser apenas um indício de abuso.
Cabe afirmar que o STJ aceita a desconsideração quando há desvio de finalidade para fraudar credores ou confusão patrimonial entre empresa e sócios, além da insolvência da sociedade empresária.
2.4 Responsabilização a terceiros
A desconsideração da personalidade jurídica é um instrumento fundamental no contexto da responsabilidade das empresas e de seus membros, como sócios, administradores e terceiros relacionados. Ela permite atribuir responsabilidade por obrigações sociais a esses indivíduos, especialmente em casos de atos ilícitos ou abusivos.
A doutrina e a jurisprudência muitas vezes confundem a desconsideração da personalidade jurídica com a responsabilidade pessoal dos sócios em empresas de responsabilidade limitada. Enquanto a primeira está relacionada à responsabilidade civil e requer atos ilícitos por parte dos membros da empresa, a segunda envolve a responsabilidade subsidiária dos sócios pelas dívidas sociais.
Explicando melhor, a distinção entre a desconsideração da personalidade jurídica e a responsabilidade pessoal dos sócios em empresas de responsabilidade limitada é crucial no contexto da responsabilidade legal. Enquanto a desconsideração da personalidade jurídica está ligada à responsabilidade civil e requer a comprovação de atos ilícitos por parte dos membros da empresa, a responsabilidade pessoal dos sócios é subsidiária e se refere à obrigação de responder pelas dívidas sociais em caso de insuficiência do patrimônio da empresa.(DE FÁIMA RIBEIRO, 2023).
No caso da desconsideração da personalidade jurídica,ainda conforme a mesma autora, ela pode ser aplicada não apenas aos sócios, mas também a terceiros, como administradores e até mesmo a outras empresas relacionadas, em situações em que ocorrem atos ilícitos que justifiquem essa medida. Por exemplo, se houver evidências de que uma empresa utilizou agentes para fraudar ou cometer atos ilícitos, a desconsideração da personalidade jurídica pode ser aplicada para responsabilizar não apenas os sócios, mas também os agentes envolvidos na fraude.
Por outro lado, a responsabilidade pessoal dos sócios em empresas de responsabilidade limitada é subsidiária, o que significa que eles são responsáveis pelas dívidas sociais somente após o esgotamento do patrimônio da empresa. Essa responsabilidade normalmente está condicionada ao não cumprimento de obrigações legais, como a falta de integralização do capital social, a participação em deliberações sociais contrárias à lei ou ao contrato social, ou o descumprimento do dever de diligência por parte dos administradores.
A legislação, como a Lei 11.101/2005, estabelece requisitos específicos para a desconsideração da personalidade jurídica, como previsto no artigo 50 do Código Civil de 2002. Essa desconsideração pode ocorrer de forma incidental ao processo de falência, onde a responsabilização por atos ilícitos é apurada.
Importante que fique bastante claro que antes dessa reformulação, havia divergências e debates intensos sobre a possibilidade e os critérios para estender os efeitos da falência a esses agentes.
É importante notar que a responsabilidade dos sócios por dívidas da empresa é subsidiária, condicionada ao prévio esgotamento do patrimônio social. Em alguns casos, essa responsabilidade pode ser ilimitada, sujeitando os bens pessoais dos sócios ao pagamento das dívidas sociais.
A extensão da falência aos sócios, controladores e administradores de empresas de responsabilidade limitada tem gerado debates e divergências. A recente Lei 14.112/2020 reformulou o artigo 82-A da Lei 11.101/2005, vedando expressamente essa extensão, mas permitindo a desconsideração da personalidade jurídica quando necessário (SACRAMONE, 2023).
Com essa alteração trazida pela Lei 14.112/2020 mesmo em situações excepcionais em que se verificam os requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica da empresa falida, os efeitos da falência não podem mais ser estendidos automaticamente a esses indivíduos.
No entanto, é importante destacar que a lei ainda permite a desconsideração da personalidade jurídica quando necessário. Isso significa que, em casos específicos de fraude, abuso de direito ou outras situações que justifiquem a responsabilização individual dos sócios, controladores ou administradores, a desconsideração da personalidade jurídica pode ser aplicada. Nesses casos, a responsabilidade recairá diretamente sobre esses agentes, não se estendendo automaticamente a eles os efeitos da falência.
Essa modificação teve o objetivo de trazer mais clareza e segurança jurídica para as situações em que se discute a responsabilidade dos sócios e administradores em casos de falência. Ao mesmo tempo, ela também visa evitar interpretações equivocadas que poderiam levar a uma extensão excessiva dos efeitos da falência aos agentes envolvidos, sem observar os critérios adequados para a desconsideração da personalidade jurídica.
A reforma trazida pela Lei nº 14.112/2020 foi um marco significativo no contexto da responsabilização de terceiros no processo falimentar, buscando evitar abusos e distorções na aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. Ao estabelecer limites claros para essa medida, a legislação trouxe mais segurança jurídica e equilíbrio nas relações empresariais, protegendo tanto os credores quanto os agentes envolvidos na gestão das empresas em situação de falência.
3. Conclusão
No entanto, mesmo com essa importante reforma, ainda existem desafios e debates em torno da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica de forma justa e equitativa. É fundamental acompanhar de perto os posicionamentos da doutrina e da jurisprudência, buscando aprimorar continuamente a interpretação e a aplicação da lei, garantindo assim a proteção dos direitos de todas as partes envolvidas.
Nesse sentido, este estudo contribui para o debate ao destacar os efeitos da falência para os envolvidos, a distinção entre a desconsideração da personalidade jurídica e a responsabilidade pessoal dos sócios, e os critérios para a aplicação justa da desconsideração no contexto falimentar. Ao compreender melhor esses aspectos, torna-se possível desenvolver estratégias e políticas que promovam a responsabilidade empresarial sem ferir o princípio da responsabilidade limitada, essencial para o ambiente de negócios e a proteção dos direitos dos empresários e gestores.
Dessa forma, a análise realizada neste trabalho reforça a importância de uma abordagem equilibrada e criteriosa na responsabilização de terceiros na falência, visando sempre a justiça, a legalidade e a proteção dos interesses das partes envolvidas no processo falimentar.
Referências Bibliográficas
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